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Lei Complementar 116 - DEMISSÃO DO SERVIDOR PÚBLICO POR INCAPACIDADE DECISÓRIA
Tema já desperta polêmicas pela multiplicidade de aspectos que envolvem a qualidade do serviço
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar 116 de 2017 que regulamenta o artigo 41, §1º, III, da Constituição da República. Trata-se de um projeto que visa disciplinar, em todos os níveis da federação, a sistemática da perda do cargo por servidor público estável após regular avaliação de desempenho. Por si só, o tema já desperta polêmicas pela multiplicidade de aspectos que envolvem a qualidade do serviço público. Mas o presente artigo tem um objetivo de pequena escala. Busca chamar a atenção para uma questão institucional curiosa do projeto: a adequada tomada de decisão em serviço como um possível fator avaliativo da qualidade do servidor.
Da leitura do artigo 10 do PL 116 é possível extrair que os servidores públicos, necessariamente, serão avaliados por fatores fixos e fatores variáveis. Os fatores fixos são subdivididos em qualidade e produtividade. Já os fatores avaliativos variáveis, como o próprio nome já diz, variam conforme as atividades primordiais exercidas pelo servidor individualmente considerado. A lei elenca em seu artigo 9º doze critérios avaliativos variáveis e o artigo 10 aponta que o avaliador escolherá cinco desses critérios a partir das diretrizes expedidas pelo órgão máximo de recursos humanos em que se insere a unidade avaliadora. Assim, nem todo servidor será avaliado pelo critério de habilidade decisória, o que parece bastante apropriado.
Atribuídas as notas relativamente aos fatores avaliativos, o servidor terá seu desempenho medido por um mecanismo de pontuação, que não vem ao caso detalhar no momento. Por ora, o que merece destaque é a previsão de avaliação sobre a capacidade decisória do servidor como um dos critérios cogitados para demissão no serviço público. E da forma como hoje redigida essa questão, o PL116/ 2017 ignora que a capacidade decisória do agente público deve ser contextualizada com a capacidade institucional de planejamento da administração pública. O servidor jamais pode ser considerado idealmente, mas sempre empiricamente, à luz das condições de trabalho, de salário, de pressão e de tempo disponíveis para agir etc.
Para um servidor ser corretamente avaliado em matéria de decisão, é necessário antes existir no órgão de lotação um planejamento transparente de ações institucionais (priority-setting),a fim de servir como parâmetro de comparação entre o comportamento do agente e o que a instituição elencou como prioridade em um determinado período de tempo.Caso contrário, o servidor ficará refém de critérios avaliativos pouco seguros,com base em conhecimento vulgar do avaliador, podendo gerar aumento de judicialização da matéria. Além disso, sem um planejamento-guia, o agente público pode formular seus próprios critérios decisórios, os quais nem sempre serão os mais apropriados. Isso simplifica a tomada de decisão, mas reduz as potencialidades do órgão, especialmente se a gestão da unidade não tiver uma visão sistêmica de trabalho. Se a administração não planeja sua atuação, não é possível concluir o que seja decidir de forma adequada.
Portanto, é preciso ter apuro na redação legislativa. Corre-se o risco de se permitir que as falhas de planejamento do órgão sejam imputadas como falhas profissionais do servidor. Na área da saúde, por exemplo, em que escolhas trágicas são tomadas cotidianamente, o tema precisa ser debatido em conjunto não apenas com a unidade de recursos humanos, como também com o próprio órgão planejador de políticas públicas. Responsabilizar médicos por falhas de atendimento é muito demagógico, e esconde os gargalos de gestão. Assim, os problemas de índole gerencial, por impactarem o ambiente institucional, não podem ser tratados como problemas de competência dos servidores.
O enunciado do inciso VII, do artigo 9º, que menciona a tomada adequada de decisão como hipótese de fator avaliativo variável do servidor público, também não trata da relação existente entre o agente decisor e os custos institucionais a ele impostos para a correta tomada de decisão. Parece que o cálculo de erro, de custo/benefício e os custos de coordenação do órgão são da responsabilidade exclusiva do agente decisor. Ao prever que o servidor deverá analisar as alternativas possíveis para uma adequada decisão, o PL ignora a necessidade de expor quem fornecerá essas alternativas e como serão distribuídos os custos de procura da melhor escolha.
Ora, a escolha para tratar um ou outro paciente em uma emergência hospitalar da rede pública de saúde, com limitações extremas de infraestrutura, não pode ser atribuída com exclusividade ao médico de plantão,porque na verdade fatores institucionais, como limitação orçamentária e multiplicidade de alternativas, conduzem o decisor a realizar escolhas subótimas. Assim é na saúde e em todas as demais áreas. Infelizmente, o PL ignora os avanços da psicologia e da economia comportamental, tratando o processo de tomada de decisão ainda como algo puramente racional, idealizado e de exclusiva responsabilidade pessoal do decisor. Todavia, o processo decisório individual sofre inúmeras interferências externas, fruto da necessidade de decidir muito, sem estrutura e em espaço de tempo curto. A dinâmica institucional pela produção de vieses deve ser contabilizada, sob pena de se criar um sistema perverso de avaliação de desempenho.
Como explicam Cass Sunstein e Adrian Vermeule (The Law of Not Law, 2013), os órgãos públicos possuem orçamentos limitados e competências variadas. Em função disso, é legítimo que escolham algumas opções e não atendam a outras. Quando o poder público traça metas, as atividades que ficarão de fora dos objetivos a serem alcançados pertencem ao território das decisões tomadas sobre o que não será decidido. E o servidor, assim, estará isento de responsabilidade nesse campo. Ou seja, a discricionariedade na produção de escolhas institucionais é legítima, considerando as limitações factuais existentes, mas a escolha de prioridades deve ser informada a todos os servidores de órgãos que lidam com tomadas de decisão, a fim de melhorar a coordenação das atividades desenvolvidas no seio da administração pública,evitando-se posteriormente atribuir ao servidor responsabilidades indevidas.
O giro institucional cumpriu um papel relevante ao chamar a atenção dos teóricos para fatores até então negligenciados pela teoria do direito. Em vez de decidir de forma adequada ou de atender ao interesse público abstratamente considerado, é preciso antes avaliar os fatores de incerteza e racionalidade limitada que impactam o processo concreto de tomada de decisão,sem falar em seus efeitos sistêmicos. Ninguém pode ser avaliado em sua competência decisória sem que fatores institucionais também sejam avaliados. Decidir é sempre um processo contingente. Por isso, desprezar que o cálculo de risco no processo decisório é um custo a ser compartilhado entre servidores e instituições pode produzir um mecanismo de criação de injustiças, em que o elo rompe em face do politicamente mais fraco.
O PL 116/2017, a despeito de outras críticas que sobre ele recaiam, andou muito mal ao prever a tomada de decisão como fator avaliativo do servidor. Isso porque tratou o tema com pouco apuro técnico, desconsiderando a necessidade de coordenação entre agentes planejadores e agentes executores. As decisões tomadas pelos executores são impactadas por planejadores, normalmente pessoas com algum vínculo de afinidade político-partidária de ocasião. De tal modo, a avaliação de competência decisória do servidor de carreira nunca pode ser tratada isoladamente. O critério correto de medição de capacidade decisória e cai sobre o cotejo entre atos individuais com o planejamento de prioridades formulado pelo órgão público avaliador. Caso contrário, ou a avaliação decisória não sairá do papel ou quando a conveniência política recomendar se prestará a desvios de finalidade.
Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira – Mestrando em Democracia, Instituições e Desenhos Institucionais pelo PPGD/UFRJ; Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticossobre o Comportamento das Instituições – LETACI, do PPGD/UFRJ; Procurador Municipal e Advogado no Rio de Janeiro.
Fonte: Jota