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MULHERES COM DEFICIÊNCIA CONTRA A REFORMA
Ser uma mulher com deficiência no Brasil é estar dentro de um contingente de 25.800.681 pessoas, 13,53% da população total do país. Somados, homens e mulheres, representamos 23,9% da população brasileira (IBGE, 2010). É importante frisar que este levantamento contabiliza somente mulheres ouvidas em domicílio, desconsiderando a parcela que vive em situação de rua.
Segundo a RAIS, em 2017 nossa presença em empregos formais era de apenas 0,96%. Esse dado já é suficientemente preocupante, mas ao dividi-lo por gênero, temos 0,61% para homens e apenas 0,35% para mulheres, sendo que a proporção nesse segmento populacional é de 100 mulheres para 76,7 homens.
A luta das pessoas com deficiência foi marcada pela voz masculina e ainda hoje sentimos o reflexo do afastamento dos debates por encontrarmos no machismo mais uma barreira a ser enfrentada.
A constatação desse fato, por exemplo, é evidenciada ao percebemos que, entre nós, mulheres com deficiência, apenas *0,62% se encontram no mercado de trabalho.
Mesmo a Lei de Cotas (Nº 8213/91) existindo há quase 30 anos, a resistência a nossa presença segue sendo a regra. Se não bastasse isso, em 2017, a Lei de Terceirização (Nº 13.429) e a Reforma trabalhista (Nº 13.467) foram aprovadas. O que muitos ignoram é que essas leis foram um forte ataque também para nossa tímida permanência no mercado de trabalho.
A Lei de Cotas prevê percentuais de contratações crescentes, conforme o total de empregados, podendo variar de 2% desse efetivo paras as que têm de 100 a 200 empregados, até 5% das que tem mais de 1.000 empregados.
Sendo assim, a possibilidade de terceirizar a atividade fim somada à Reforma Trabalhista, que propicia o aumento do número de demissões por acordos, fora dos sindicatos, e cria o trabalho intermitente, comprometem diretamente a aplicabilidade da legislação devido à diminuição do número de empregados.
É importante enfatizar que entre os trabalhadores com deficiência com vínculo empregatício, 65% estavam em empresas com mais de 1.000 empregados e 93% das pessoas com deficiência foram contratadas por empresas obrigadas a cumprir a Lei Nº 8213/91 (RAIS, 2017).
Ou seja, mesmo que a Lei de Cotas não tenha promovido inclusão ampla, foi através dela que garantimos minimamente nossa presença.
Ressaltamos que, para além dos fatos apresentados, a precariedade dos vínculos empregatícios, estimulados pela Lei de Terceirização e Reforma Trabalhista, somados ao fato do Ministério do Trabalho ter sido diminuído ao status de Secretaria, o que implica na redução de investimento na fiscalização da Lei de Cotas e das condições de segurança dos trabalhadores e trabalhadoras, é um importante fator que pode resultar em mais pessoas vivenciando a deficiência e afastadas do mercado de trabalho.
É nesse contexto de violência disfarçada de legislação que recebemos a Proposta de Emenda à Constituição 06/2019. A PEC da Reforma da Previdência ameaça até o que não está em seu guarda-chuva, como o benefício de prestação continuada (BPC). O BPC é um beneficio assistencial (e não previdenciário), destinado, no caso das pessoas com deficiência, a quem não consegue/pode entrar no mercado de trabalho e tem renda inferior a ¼ de salário mínimo por membro da família.
Pela proposta da DEforma, o BPC fica condicionado ao não recebimento de outro benefício e a morar em uma casa, caso seja própria, com valor inferior a R$98.000,00. Traduzindo, quem já se encontra em situação de intensa vulnerabilidade será colocada, como diz no próprio texto da PEC, à miserabilidade.
Quem mal consegue pagar suas contas, a partir dessa proposta também não terá garantia mínima de matar sua fome.
Além disso, a Reforma Trabalhista também fará com que mulheres que passem a vivenciar a deficiência em decorrência da violência machista, por exemplo, não consigam se aposentar por incapacidade, já que somente em casos de doença profissional e acidente de trabalho é que esse benefício corresponderia a 100% do valor da média salarial.
Atualmente, a Lei Complementar nº 142/2013, que se aplica a trabalhadores e servidores com deficiência, exige tempo de contribuição de 33/28 anos, 29/24 anos e 25/20 anos para a deficiência leve, moderada e grave de homens e mulheres, respectivamente.
A proposta da DEforma equipara homens e mulheres com deficiência, ignorando os aspectos da desigualdade de gênero, e propõe alteração desses tempos para 35, 25 e 20 anos para mulheres e homens com deficiência leve, moderada e grave. Ou seja, mulheres com deficiência moderada terão de contribuir 01 ano a mais e as com deficiência leve serão penalizadas por sua condição, com um aumento de 07 anos de contribuição, 05 anos a mais em comparação a trabalhadoras urbanas e servidoras sem deficiência, que podem se aposentar com 30 anos de tempo de contribuição.
Ignorar a intersecção entre deficiência e gênero deflagra a invisibilidade a que somos cotidianamente submetidas e que perpetua a naturalização de violências aos nossos corpos.
O Brasil, ao ser signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e incorporá-la em sua Constituição, reconhece que mulheres e meninas com deficiência estão mais sujeitas a violências e outras discriminações e se compromete a adotar medidas que assegurem nossa proteção. Sendo assim, se aprovada a PEC 06/2019, o Estado desrespeitará o acordo a que é signatário ao desconsiderar a pouca representatividade das mulheres com deficiência no mercado de trabalho e as inegáveis barreiras que perpassam o gênero.
Por mais que a Reforma da Previdência atinja somente 0,62% de nossas companheiras, elas representam a possibilidade de transpormos os obstáculos inenarráveis e nos fazermos presentes nesse espaço. Sabemos e sentimos o quanto esse lugar de direito se tornou um privilégio.
Enquanto pessoas que ferem a possibilidade da perpetuação do colonialismo em seus corpos, sentimos o peso da segregação e o eminente desamparo representado pela possibilidade de um Estado Mínimo. Sabemos que em momentos de crises, enquanto mulheres COM deficiência, somos nós que sentiremos de forma perversa o rompimento dos pactos sociais estabelecidos em nossa Constituição Federal de 1988.
A defesa da meritocracia de Bolsonaro abre um tsunami para a perpetuação da miséria das pessoas com deficiência, em especial às mulheres.
Somos nós que vivenciamos a deficiência em decorrência da fome, tratamentos inadequados e violências obstétricas. Somos nós, mulheres com deficiência, que servimos de enfeite em Secretarias ou somos abordadas em discursos cínicos de posse, carregados de capacitismo, como se falar uma de nossas línguas fosse suficiente pra demonstrar compromisso com nossas lutas. Não precisamos que ninguém fale em nosso nome quando temos e batalhamos por nossa própria voz.
Nós, mulheres com deficiência, compreendemos a importância da luta para garantir nossa dignidade. Nós, ao lado das demais mulheres que sentem o peso de uma sociedade misógina, racista e capacitista, entendemos a importância da unidade quando a ameaça a nossa sobrevivência tem nome, sobrenome e interesses econômicos nítidos.
Gritamos com nossas vozes e mãos: Nossa cidadania não é negociável!
Nós, mulheres com deficiência, somos contra a Reforma da Previdência.
*Relação entre o número de mulheres com deficiência no Censo 2010 e as que se encontravam em empregos formais na RAIS 2017.
Fonte: Carta Capital